hoje faz anos que nasceste
quinze dias antes do previsto, devias estar com pressa de ver a revolução que começava cá fora
os pais foram descansar de mim para a madeira e voltaram contigo gerado
um ano quatro meses e cinco dias é a nossa diferença de idade, como tínhamos orgulho em dizê-lo, assim, com os diazinhos todos contados
quase como gémeos, costuma dizer a mãe
“cá em casa é tudo dos dois” era o lema familiar
e assim partilhámos quarto, beliche, bonecas e carrinhos, legos e monopólios
contigo aprendi também o sabor amargo da derrota
como eu chorava quando me davas “grandes tareias” no xadrez, eu esforçava-me tanto, queimava os neurónios e não havia maneira de te ganhar
a adolescência afastou-nos um pouco, afinal qual é a miúda que gosta de ter o irmão mais novo atrelado?
as partilhas das intimidades passaram para as amigas e foi com mágoa no olhar que me disseste “já não és virgem e não me tinhas dito nada”, não calhou...
ao chegar aos vinte ficámos mais próximos de novo, começávamos a ficar verdadeiros amigos
quis a vida, o fado, o destino, ou ninguém que desaparecesses para sempre naquela Festa que tanto amavas, que tanto amávamos, a Festa onde a mãe não conseguiu voltar e a que eu e o pai voltamos ano após ano, já lá vão quase doze...
não há Festa como esta, a vida são dois dias e a Festa são três, para ti foi só um
estou cansado mas não me vou já deitar, disseste, afinal tenho de aproveitar a Festa
num momento ébrio achaste que eras equilibrista
mas não te seguraste bem e o teu corpo frágil não resistiu à queda
hoje é o dia dos teus anos
comprei-te flores amarelas e deixei-as lá, naquele jardim de pedra onde os gatos dormem, ao sol, a teu lado